Jesus no Mundo Maravilha (2007)
Jesus no Mundo Maravilha é um documentário brasileiro que mostra a vida de três militares que, após serem exonerados da polícia, trabalham num parque de diversões. Num clima onírico – enquanto surram o palhaço, brincam com crianças e rodam em brinquedos – eles revelam seus valores, seus sonhos e seus crimes. Enquanto isso, uma família vítima de policiais chora a morte de seu filho e clama por justiça. Vencedor do DoctvLatinoAmericano e exibido em 25 países, o filme dividiu a crítica e suscitou fortes debates.
A minha mãe de criação foi vítima de latrocínio. Na época eu tinha de 16 para 17 anos e tentei algumas vezes visitar o sujeito, um deles foi preso, na época no DEIC. Sinceramente, a minha intenção era matar ele lá dentro. Eu ia matá-lo, você não tenha dúvida, meu intuito era pegar ele. Não vou te falar que sou um gênio, mas a gente assiste alguns filmes, você tem algumas ideias, e eu assisti a um filme, tive uma ideia lá… e eu fiz. Era um faroeste que tinha uma bíblia e um revólver, e aquilo me inspirou. Eu fiz. Arrumei uma arma, comprei, e fui no DEIC pra matar o cara. E funcionou, até cinco metros da cela dele. Eu sentia o gosto da vingança. Aí o tira tava saindo e me reconheceu. Frustrou meu plano, quase acabei ficando preso, mas como o delegado que atendeu a ocorrência da minha mãe tava lá: ‘Já que você tanto quer caçar bandido, por que não entra pra polícia?’ – e ouvindo aquilo, eu falei: ‘esse delegado tem razão! Vou ser polícia. E bandido eu vou caçar’. E cacei, durante 25 anos. Cacei. Todos que eu vi eu cacei. O que eu deveria e mais por alguém. Eu nunca deixei a desejar, graças a Deus. Esse depoimento, dado pelo ex-policial Lúcio, abre o documentário Jesus no Mundo Maravilha (e outras histórias da Polícia Brasileira), dirigido por Newton Cannito, que se debruça sobre o cotidiano de três policiais expulsos da corporação.
Lúcio, conhecido como Charles Bronson de Itaquera, afirma, sem o menor constrangimento, ter matado mais de 80 e menos 100 bandidos. Não demonstra qualquer arrependimento por essas mortes e, ao longo do documentário, trata de temas como a tortura e homicídio de marginais com leveza e bom humor.
Jesus, deprimido por causa da exoneração, chegou a tentar o suicídio.. Jesus, outro policial expulso da corporação, vive deprimido porque o militarismo é o centro da sua existência. A depressão o levou a tentar o suicídio. Ele não entende por que foi exonerado, e luta na Justiça para ser reintegrado à polícia. Enquanto isso não acontece, trabalha como segurança em vários locais, dentre os quais o Mundo Maravilha, o parque de diversões que dá nome ao filme.
O terceiro policial, Pereira, tornou-se pastor evangélico após cumprir pena e consegue enxergar a fragilidade moral do papel de matador que assumiu antes de ser preso.
Paralelamente a essas três histórias, um casal que teve o filho assassinado por um policial (segundo a mãe, por ser negro) tenta conviver com a dor da ausência e com a luta para que o matador de seu filho seja preso.
Completando o quadro, o Palhaço Maravilha, uma presença felliniana que perambula pelo parque enquanto o documentário é feito, transmite uma imagem de inocência quase infantil, até revelar, em determinado momento, uma ambição tão ingênua quanto oportunista.
Essas personagens seguem seus próprios caminhos ao longo do documentário, rumo a um encontro difícil que, embora constrangedor, não traz qualquer espécie de redenção ou aprendizado aos envolvidos. Confrontados com as palavras severas e o olhar duro dos pais do jovem assassinado, os ex-policiais sentem o momentâneo desconforto de enxergar o marginal, o bandido, o outro, não como um alvo, mas como um ser humano.
Mas essa fugaz colisão de mundos não gera nenhuma explosão. Os pais que perderam o filho não passarão a entender melhor o mundo dos ex-policiais, que, por sua vez, não deixarão de ver a bandidagem como escória a ser eliminada. No incômodo encontro produzido pelo cineasta Newton Cannito, ao qual não faltaram os representantes dos direitos humanos – cujo discurso, tão correto quanto vazio, não alcança as realidades dos envolvidos nas tragédias, sejam as vítimas ou os algozes – não há qualquer troca verdadeira, além do curto momento de amargura e constrangimento que, fica bem claro, não passará disso – um momento.
Que talvez tenha repercutido mais profundamente em uma única pessoa – o hoje pastor Pereira, que, ao ouvir do pai do jovem morto: Não leve a mal, não, mas eu sei lá por que você está com essa bíblia hoje aqui? De repente você cometeu um erro grave e se arrependeu, contorce o rosto e baixa os olhos, no que é provavelmente o momento de maior humanidade de todo o filme.
Newton Cannito transmite essa incomunicabilidade, em que todos falam, mas ninguém parece disposto a ouvir, sobrepondo às palavras ora uma sonata de Mozart, ora a abertura da ópera Guilherme Tell, de Rossini. A ironia, por sinal, é a linha condutora da narrativa, e a dissonância entre o humor da forma e a gravidade do conteúdo gera uma intencional sensação de perplexidade. A opção de narrar a quase totalidade da história num parque de diversões pobre e decadente fortalece a sensação de irrealidade.
O diretor Newton Cannito explica que usou o humor porque queria despertar o choque, porque a forma do drama social está tão desgastada que perdeu o impacto, e que para revelar novamente essa realidade cruel era preciso mostrá-la em uma nova forma (leia a entrevista na íntegra clicando aqui). Sem dúvida, seu objetivo foi alcançado.
A polícia perdeu a moral totalmente, tudo devido às emissoras de televisão. Ocorrência policial não pode ser filmada. Na nossa época nós impúnhamos moral e ninguém falava nada para nós, afirma um policial aposentado, defensor enfático da pena de morte e dos esquadrões da morte (enquanto o filme mostra cenas de tortura e abuso policial na Favela Naval, em Diadema, registradas em 1997).
Foram 25 anos de guerra honesta, e eu nunca desisti, diz Lúcio. E resume numa frase a convicção de muitos, não só policiais: Hoje, infelizmente, o Estado não quer que você faça nada mais do que o que está na lei. Por isso que aumenta a criminalidade.
Feito em 2007, Jesus no Mundo Maravilha é indispensável para quem quer conhecer melhor a mentalidade de uma parte dos membros da polícia, que enxergam a lei não como fundamento, e sim como empecilho à sua atuação. Claro que nem todos pensam assim. Mas o universo mostrado no filme retrata a visão de mundo de muita gente – policiais e não policiais. É o que basta para confirmar a relevância da obra.
Lúcio, Charles Bronson de Itaquera
Jesus
Palhaço Maravilha
Pereira
Direção: Newton Cannito
Roteiro: Newton Cannito e Waleska Praxedes
Produção: Roberto Dávila
Produção Executiva: Rodrigo Faria Suraia Leinktaitis
Fotografia: Rodolfo Figueiredo
Montagem: André Francioli
Som: Raphael Lupo
Trilha: Raphael Lupo e Guga Bernardo
Internet:
BLOG CABINE MENTAL. http://cabidemental.blogspot.com.br/2012/10/jesus-no-mundo-maravilha.html
BLOG DO FILME. http://jesusnomundomaravilha.blogspot.com.br/